Friday, October 27, 2006

Parkour, filosofia e intervenção urbana

Parkour, filosofia e intervenção urbana

Quando começamos a praticar parkour, percebemos que despertávamos algum estranhamento. Seguidos por olhares críticos, frequentemente fomos tratados como vândalos ou adultos infantilizados, brincando de pular muros. Descobrimos que a prática de atividades não convencionais poderia revelar preconceitos de muitas pessoas. Felizmente, isso não foi a regra, mas uma constante exceção. Estamos acostumados à intensa privatização do saber, das práticas, do ambiente em que vivemos etc. Esperamos e nos acostumamos também à normatização das coisas, em detrimento à criatividade e às desconstruções e redirecionamentos. Quando passamos a frequentar praças públicas para treinar, descobrimos o quão mal utilizadas elas são. Muitas vezes, encontramos em dias ensolarados parques e praças vazias, espaços públicos abandonados ou inexplorados. Enquanto isso, ambientes privados como shopping centers, academias e clubes por exemplo, contavam, no mesmo período, com muitas pessoas. É justamente o abandono, ou o desinteresse pelo espaço público, que faz as autoridades responsáveis os negligenciarem. É compreensível que uma praça mal iluminada e vazia facilite roubos ou outras violências. Justamente por isso é que precisamos estar do lado de fora de nossas casas, ocupando esses hambientes, dando-lhes significados que os marcarão como nossos. Um espaço público frequentado torna-se mais seguro e cuidado. Mais que isso, ele passa a definitivamente existir e precisa ser considerado pelas autoridades competentes. A apropriação desses espaços é a principal forma de se reivindicar segurança, cuidado e olhar para nossa relação com eles.

Também aprendemos que exercícios devem ser feitos nas academias, amparados por tecnologias cada vez mais novas. Temos a impressão de que um aparelho de musculação de última geração é sempre a melhor forma de se conseguir saúde. Acreditamos que a academia mais cara deve ser a melhor para nós.

Será que não vale a pena voltarmos um pouco para o passado? Temos a crença de que não, pois aprendemos que nosso comportamento deve estar direcionado para o futuro. Mas vamos fazer esse exercício agora. Quando crianças, somos capazes de exercer uma criatividade de dar inveja a qualquer adulto. A caixa de fósforos transforma-se em casa, a mesa de jantar num estádio de futebol, seres superpoderosos nos ajudam em nossos objetivos, e assim por diante. Nossa curiosidade nos tira dos caminhos convencionais e queremos subir na mesa para ver o que há sobre ela. Subimos em árvores para colher frutos ou brincar de Tarzan. Assim, de forma espontânea, treinamos nosso corpo e mente para o futuro e temos muito prazer naquele presente. O parkour, que em sua origem traz a história de uma relação entre pai e filho, também pode ser encarado como uma retomada de tudo que antes lembrei. Ter prazer numa atividade física e recriar o espaço pode ser, para muitos, mais familiar e natural que repetir a mesma série de exercícios no mesmo lugar. O contato com o ambiente por esse caminho resgatado, a busca de novos obstáculos, a criação de novas formas de ultrapassá-los e, principalmente, a mudança de sentido que o parkour dá aos objetos urbanos e naturais, ensina que podemos recriar sempre, que podemos fazer do mundo aquilo que queremos que ele seja e não aquilo que quiseram por nós. Ao mesmo tempo, devido à variedade infinita desses objetos e às particularidades de um para outro, nosso corpo é trabalhado por completo. O parkour esta em nossa vida o tempo todo. Andamos, corremos, abaixamos, subimos, perdemos apenas a forma se perceber isso.

Transformamos assim, a cidade num grande exercício de possibilidades, onde o percurso de exploração é interminável. Todo o crescimento físico e mental que o parkour proporciona é conquistado individualmente, em relação aos seus próprios objetivos, sem a fantasia de que qualquer progresso depende de fatores externos. Tomamos consciência de que os objetivos e desafios a serem superados dependem da criação de nosso próprio caminho, inevitavelmente construído e articulado com o do outro, como a própria história do parkour nos mostra. Apesar de nosso grupo, até o momento, praticar parkour inspirado em David Belle, fazemos isso por escolha, sendo contra qualquer normatização ou tentativa de aprisionamento de nossa prática. Acreditamos que ele inevitavelmente vai além de ir de um ponto a outro do ambiente superando todos os obstáculos. O vemos como uma porta para a reocupação construtiva do espaço público e privado. Por isso, todas as manifestações artísticas, esportivas, arquitetônicas, de entretenimento etc, que propõem mudanças positivas, nos interessam. Da mesma forma, acreditamos que o parkour pode ser um incentivo para grupos de dança, teatro, praticantes dos mais variados esportes e outros para que ocupem as ruas e transformem escadarias em arquibancadas para espetáculos, mesas de pique nique em mesas de ping-pong, terrenos abandonados em pistas de esportes, viadutos em palco de teatro e tudo o mais que possa nos fazer bem.

Recentemente, estávamos em um parque da cidade de São Paulo quando um menino de cerca de sete anos soltou a mão de sua mãe, saiu da trilha que seguiam e entrou numa área muito pequena colada à trilha, mas de maior densidade de árvores. Sua mãe gritou em tom desesperado para que ele voltasse, dizendo que seria atacado por aranhas. O menino volta decepcionado, e continua cabisbaixo pela trilha construída. Esta cena nos fez pensar. Desde pequenos aprendemos que as únicas trilhas possíveis a serem seguidas são aquelas já prontas, algo como andar na linha, pois desviar dela seria perigoso. Não havia perigo ali, sua mãe poderia acompanhá-lo, para que ela se sentisse tranquila. Encontramos pessoas que, limitadas a responder a estímulos, pouco fazem por próprio impulso e se veem como zumbis quando lhes são retirados os estímulos que parecem mantê-las vivas; nada conhecem de sua liberdade e de sua criatividade. Esse menino perdeu a chance de se aventurar, de trilhar seu próprio caminho e ser criativo. A trilha só o permitia contemplar a natureza, enquanto o que ele realmente desejava era interagir com ela. Um praticante de parkour faz de uma suposta transgressão uma forma criativa de se viver. Não teme entrar na mata fechada, prefere conhecê-la antes de recusá-la. Diante de obstáculos difíceis, aprende a se aproximar com cautela, mas sem temê-los despropositadamente. Diante de obstáculos intransponíveis, aprende a reconhecer e respeitar os limites. Preferimos cair e levantar, pois acreditamos que a vida é assim.

Hoje, alguns grupos de parkour têm se permitido sair da linha. Mas que as coisas não se confundam. Ser correto e andar na linha é muito bom. Sair da linha é poder criar, utilizá-lo na dança ou no teatro, se unir para agir, protestar ou apoiar. Isto é possível na medida em que se amadurece que se conquista um sentimento de si, que permite uma posição básica a partir da qual operar e se afirma em responsabilidade como individuo, que nem agrada ou desagrada a todos.

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